sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Outro Lugar


As vezes, quando estamos perdidos recordando nosso passado, acabamos lembrando de histórias engraçadas ou casos que ficaram sem respostas e que acabaram ficando por isso mesmo. Foi um desses casos que me peguei pensativo em meio a conversas de família. Claro que todos riram de mim quando contei, criando mil respostas de porque o que eu disse não poderia ter acontecido e logo mudando de assunto, mas eu estava lá e sei bem de tudo o que vi.
Bom, deixa eu começar do começo. Eu era o típico jovem que trabalha numa coisa chata de dia para bancar a faculdade que quer a noite. Nos dias que eu tinha aula eu ia direto do escritório, precisava pegar dois ônibus, um que me deixaria na rodoviária e outro até a faculdade. Qualquer ônibus que eu pegasse, independente do caminho, me deixaria no mínimo perto da rodoviária, então eu simplesmente fazia sinal pra qualquer um que estivesse chegando e ficava completamente despreocupado, pois sabia que de algum jeito eu chegaria no meu destino. Foi sempre assim durante todo o tempo que trabalhei por lá, e foi assim que o tal fato estranho aconteceu.
Como todos os dias, saí do trabalho às 18 horas em ponto, fui até o ponto conversando com o pessoal e tão logo avistei um ônibus chegando. Não prestei atenção em qual seria seu número, pois estava abrindo o arquivo de uma matéria que me enviaram pelo celular. Fiz sinal e quando o ônibus parou entrei com os olhos no celular. Apenas eu entrei. Como disse, não me importava, afinal, qualquer um me deixaria onde eu queria.
Sentei num dos bancos altos do lado da janela e saquei meus fones de ouvido. Com uma rápida olhada percebi que tinham poucos passageiros, o que é estranho, já que era o horário em que muitos saiam do trabalho, logo seria raro um ônibus vazio, era esquisito, mas não me importei, tinha uma apostila de cálculos pra ler, era mais importante.
O ônibus tinha atravessado poucos quarteirões quando uma senhora no banco de trás me cutucou. Seus cabelos brancos, sua frágil pele enrugada e seus óculos de armação grossa retrô davam a ela um ar simpático. Ela fez um sinal de que queria falar algo e tirei os fones para ouvir.
“Meu jovem, acho que você está no ônibus errado, não?” Ela perguntou meio que afirmando. Eu dei um sorriso meio tímido e respondi que não, que ele me deixaria no ponto certo. Estava pronto para virar e voltar a minha leitura, quando a senhora me chamou de novo.
“Meu jovem, você pegou o ônibus errado.” Dessa vez ela realmente afirmou. Eu estava abrindo a boca para respondê-la quando percebi uma outra mulher se sentando do meu lado. “Não, ele não vai para Setealem. Com certeza é o ônibus errado” disse a segunda mulher. “Sete...quem?” Me perguntei.
“Acho melhor você descer do ônibus rapaz”  Falou um homem sentado do outro lado do corredor. Esse cenário todo estava ficando esquisito e invasivo. Cacete, quem eram eles pra afirmar que peguei o ônibus errado?
Me preparei para responder sério a senhora que começou com isso, mas o que vi não era mais o simpático rosto de uma idosa, mas uma carranca enfezada de desprezo e raiva que me encarava com esquisitos olhões amarelos que eu não havia reparado que ela tinha. A mulher que sentou do meu lado também me encarava com esses mesmos olhos amarelados e o homem do outro lado do corredor também. Quando dei por mim, todos os passageiros do ônibus estavam olhando para mim com esses olhos assustadores. Me senti pequeno...morrendo de medo...apavorado com todo esse momento bizarro. Mais um homem veio em direção de onde eu estava, ele saiu lá do fundo do ônibus e era monstruosamente grande se comparado a todos os outros passageiros. Ele me fitou por um tempo, até que fechou a cara e  falou com autoridade: “Melhor você sair e pegar o ônibus certo garoto.”
O ônibus parou com uma freada brusca. Todos continuavam a me encarar, como se eu fosse um parasita invadindo aquele lugar. Me senti  cada vez mais acuado, tentava falar mas já não tinha mais certeza de nada. Resolvi pegar minha mochila e finalmente descer. Eles me acompanharam com os olhos até que eu chegasse na porta.
“Toma cuidado, você não vai querer ir pra lá por engano.” Falou o motorista completamente apático enquanto eu passava por ele.
Desci do ônibus e fiquei estático por um tempo vendo ele se afastar até finalmente sumir virando em uma esquina que nunca vi nenhum ônibus entrar. Racionalizar todo aquele estranho momento não me ajudou em nada, porque eu não consegui pensar em nenhuma resposta plausível para o que diabos tinha acontecido. Pelo menos, pra minha sorte, o lugar onde eu fiquei não era muito longe do ponto no qual eu tinha iniciado essa viagem maluca, então acabou que não demorou muito até chegar outro ônibus (e é claro que dessa vez eu olhei com atenção o destino dele no letreiro).
Me sentei na janela novamente e fiquei olhando a paisagem passar para tentar esfriar a cabeça, até que passei pela rua na qual minha antiga condução havia virado. Meus olhos esbugalharam tamanha a surpresa que tive: aquela rua era uma vila sem saída e nela não havia nenhum ônibus.
Naquele dia eu não consegui prestar atenção na aula e acho que sequer consegui dormir, lembrando dos assustadores olhos amarelos daqueles passageiros. Fiquei pensando no nome do lugar que eles falaram, e resolvi procurar no mapa para ver onde seria esse lugar, pois nunca tinha ouvido falar. “Endereço não encontrado”... É claro que não.

Então, como eu tinha falado, esse é um daqueles fatos que deixam você pensativo durante um tempo, mas que você acaba se esquecendo. Pensando bem, acho que eu preferi esquecer, é melhor assim, não quero voltar a andar por aí com medo, não de novo. De qualquer forma, agora que esse tal lugar voltou a minha mente eu devo acabar tentando saber exatamente onde ele fica, para que eu nunca passe perto dele. Então se você souber de algo, me avise, e por favor, tome cuidado, pois você não vai querer parar em Setealem.