quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Distúrbio


Não sei o que estou fazendo aqui, tão longe de minha casa. Sei que conheço essas ruas escuras e sinuosas, mas não consigo recordar de onde. Meu corpo se move certo de que sabe o que está fazendo, e minha mente confusa me engana e só permite que os músculos tomem o comando.
Me lembro de ter pego o trem, mas tudo depois disso não passa de um borrão nebuloso repleto de imagens emaranhadas com informações abstratas.
Me sinto mal. Está frio e estou de casaco, mas suando de maneira incontrolável. Tontura e cansaço me tomam, como se eu tivesse andado por dias a esmo até chegar aqui. Minha respiração ofegante e minha visão sem foco diziam que eu deveria parar, mas não o fiz até chegar ao meu destino.
A minha direita havia uma semi construção inacabada de alguma coisa que não conseguia identificar. A minha esquerda uma rua que subia até onde a neblina não deixava mais eu enxergar. A minha frente uma casa grande, com um pequeno jardim com brinquedos para crianças. Não havia muros, apenas grades, que me permitiam ver até o interior do terreno. Alguns carros passavam e eu desviava meu rosto para não ser reconhecido. Sim. Eu conhecia aquele lugar.
Joguei o capuz sobre a cabeça e fiquei parado observando essa casa. Já estava tarde e o mais provável era que ninguém aparecesse até o outro dia. A essa altura nada mais me importava.
Minha respiração pesada me fazia parecer um predador esperando sua presa. Minha mão tremia, não sei se por que eu estava mal ou se era de ansiedade. Uma gota de suor escorreu da minha testa direto para meu olho, o fazendo arder.
Mais um carro. Abaixo a cabeça para não ser notado.
Quando levanto vejo que alguém está andando no quintal da casa brincando com o cachorro. Era ela. Por um segundo me senti abraçado pela distante presença daquela criatura. Ela continuava linda e seu corpo se mantinha delicioso como sempre. Um segundo que meu olhar voltou a ter  foco. Lembranças das mais alegres até as mais luxuriosas piscavam tão rápidas quanto flashes de uma câmera.
Entretanto, tão rápido quanto a calma me veio, ela me foi tirada. A respiração voltou a ficar pesada. O foco passou a ser uma obrigação maligna. O calor que já estava sentindo aumentou de um jeito que me fazia sentir no próprio inferno. Meus dentes rangiam com tanta força que pareciam que iriam se quebrar. Meus músculos se enrijeceram. Aquela imagem antes boa agora não me passava nada além da sensação de asco e repúdio, a simples visão daquele sorriso debochado me deixava com um ódio indescritível, sentia que poderia matá-la a qualquer momento.
Matar.
Por isso que eu estava aqui?
Me abaixei e peguei a maior pedra que consegui. Apertei com tanta força que as pontas de meus dedos se feriram com o atrito. Me preparei para atravessar a rua. Seria o fim.
Outro carro.
Abaixei o capuz para esconder meu rosto. Sequer ouço o som de seu motor. A luz do farol dele some. Levanto meus olhos e vejo que ela ainda está lá. Como um canibal, eu estava preparado para atacar e regozijar-me em seu sangue. Mas, algo me distrai.
Meu celular toca e me desperta do que parecia ser um transe satânico. Não sei quem é, o número não está salvo. Não. Ele está, mas não enxergo seu nome direito. Atendo. Uma voz preocupada me pergunta onde eu estou e como eu estou.
Estou mal.
Me sinto mal. Está frio, mas estou empapado de suor dentro do casaco. Não sei como cheguei aqui. Esse lugar? Tenho certeza que nunca vi esse lugar, nenhuma dessas ruas escuras e sinuosas. O que essa pedra está fazendo na minha mão? Droga, machuquei meus dedos.
Na verdade eu conheço bem essa voz. Desculpe por assustar, preciso voltar pra casa agora.
Desligo o celular. Na tela dele vejo coisas escritas. Palavras assustadoras que me fazem pensar na minha fraqueza. Droga, aconteceu de novo.

Espero meu ônibus com lágrimas escorrendo em meu rosto. Acho que essa noite não vou dormir bem...