sábado, 15 de abril de 2017

No Centro do Caos


Naquela noite eu conheci o caos.

Esse é um dos milhares de pensamentos que vem me atormentando já a alguns dias, pensamentos estes que vão da dúvida mais simples, como o porque de acordarmos a cada dia, até a mais complexa, como a verdade por trás dos acontecimentos cósmicos mais impressionantes. 

Tudo isso me veio a mente depois do que ainda não sei se foi sonho ou realidade, viagem astral ou algum tipo de distúrbio do sono, ou efeito de algum remédio que eu talvez tenha tomado antes de dormir, ainda estou tentando descobrir. 

Como sempre, eu havia chegado tarde em casa e como estava muito cansado não fiz muita coisa além de tomar banho e preparar algo para comer. Foi uma refeição simples, um bife com ovo frito, fácil, rápido e saciaria minha fome. Me sentei no sofá mesmo e lá jantei assistindo televisão, era algum programa desses feitos para impressionar, falando sobre os deuses astronautas, e das prováveis influências que eles tiveram na história da humanidade. Construções, mitos, "visões", tudo isso causado pela passagem desses seres na vida dos nossos antepassados. 

Particularmente, nunca me importei muito com essas teorias, mas gosto de ver as pessoas realmente interessadas em debater sobre elas, mas como dizem:"a ignorância é uma bênção".

Mesmo tendo terminado de comer continuei ali sentado, com o prato vazio equilibrado no braço do sofá. Fiquei observando o debate sobre a criação de religiões com base nas aparições de extra terrestres, mas no meio dele acabei cochilando.

Devo ter apagado por uns trinta minutos, o programa já tinha acabado e no seu lugar estava passando alguma coisa sobre invenções, não entendi muito bem. Me levantei e deixei o prato na cozinha, enfim seriam os últimos preparativos para eu ir para a cama e descansar de vez. 

Cama preparada. A última coisa que fiz foi abrir a janela do quarto, pois lá estava muito quente e o vento que vinha de fora deixava o ambiente bem mais arejado. Me deitei. Pretendia ter uma boa noite de sono e acordar bem tarde, já que no dia seguinte seria minha folga. 

Adormeci.

Acabei acordando no meio da madrugada com um barulho alto vindo lá de fora. Levantei um pouco tonto e rabugento e fui na janela ver de onde ele vinha, mas logo que cheguei nela o som parou repentinamente. Não consegui ver nada, ainda não sei se por realmente não ter nada lá ou se porque eu ainda estava com a visão debilitada por causa do sono, só sei que não havia nada de anormal.

Ao voltar para a cama, logo que me deitei, o som voltou, tão alto e repentino quanto da primeira vez. Ele era grave e oscilante, nada parecido com alguma coisa que eu conseguia lembrar aquela hora da noite, porém dessa vez ele veio acompanhado de um vento muito forte, que jogou minhas cortinas para o alto e derrubou algumas coisas no meu quarto. Levantei assustado e fechei a janela. O barulho parou novamente, como o corte de um maestro, seco e repentino.

Confuso, preferi arrumar a bagunça só ao amanhecer e mais uma vez me deitei, acreditando que enfim iria voltar a dormir, mas quando estava quase conseguindo, mais uma vez barulho, que mesmo abafado pela janela fechada, continuava alto e parecia aumentar a cada momento. Aparentemente o vento também havia voltado, com tanta força que parecia que iria levar minha casa embora.

Assustado, saí da cama e iria para a sala, quando algo realmente diferente aconteceu. Luz. Uma luz tão forte que mesmo passando apenas pelas frestas que minha cortina deixava, conseguia iluminar meu quarto como se fosse dia. Nesse ponto a ventania batia como socos em minha janela, era como se pedisse para eu abri-la e o convidasse para entrar, mas minha reação era apenas a de estar paralisado com medo de tudo aquilo.

O vento parou. Mas a luz e o barulho continuavam ali, me chamando, sedutores e cativantes. Trêmulo, fui até ela, precisava saber de onde vinha. Levantei minha mão e abri as cortinas e a partir daí nada mais do que vi sairá de minha mente. Lembro da luz se expandindo e com um estrondo, explodindo minha janela e me tragando para dentro dela.

Gritei com toda a minha força enquanto era arrastado para fora de meu quarto, tentando inutilmente me agarrar a alguma coisa, mas fui puxado com tanta velocidade que quando dei por mim, a imagem da minha casa já não passava mais do que um pequeno ponto diminuto num emaranhado de outras casas. A luz me levara para cima, pouco a pouco me afastando da minha vizinhança, do meu bairro, minha cidade, meu país, e do....planeta.

A luz se afastou, me largando sozinho no vácuo do espaço. Me debati desesperado com medo do que a falta de oxigênio poderia fazer comigo. A falta de referência de o que era cima ou baixo me desorientava e causava uma leve sensação de náusea. De tanto me sacudir acabei rodando sobre meu próprio eixo, por tempo o suficiente para perceber que não fazia diferença se eu respirasse ou não. Observei a Terra passando algumas vezes pela minha visão, já distante o suficiente para parecer uma bola de futebol em minhas mãos, uma bola azul e brilhante. Dessa distância ela era linda e calma, e transmitia essa calma para mim através do vácuo do espaço entre nós. Pouco a pouco permiti meu corpo se acalmar, a falta de gravidade não me permitiria fazer muita coisa, então preferi apenas relaxar. Sentia meus braços e pernas formigando, como se cada um dos músculos e tendões estivessem sendo desligados, tirados de meu controle e me deixando a deriva.

Nada.

Apenas nada.

Estava boiando sozinho na imensidão do espaço escuro, me afastando cada vez mais da Terra, que não passava um ponto distante quase sem irreconhecível. Passei pelos anéis de Saturno, observando a dança cósmica de inúmeras rochas em perfeita sincronia, quase tão a deriva quanto eu. O céu nunca foi tão lindo, nunca foi tão estrelado, se é que eu ainda poderia chamar aquilo de céu, já que eu estava nele agora.

Vagando no vazio, observando brilhos e formas indistintas que jamais imaginei ver, naquele momento só meu e da eternidade, acabei tendo visões. Me vi como uma criança, inocente e pura, brincando com minhas bolinhas de gude no sítio que meus pais me levavam. Me vi correndo com a pipa vermelha que eu tanto gostava. Me pulando no colo do meu avô, apenas para ouvir as histórias de quando ele era mais novo. Que saudade daquele velho. A inocência da infância deu lugar a um adolescente rebelde, inseguro, mas bagunceiro o suficiente para sempre chegar em casa com um olho roxo das brigas que arranjava na escola. A primeira vez que repetia de ano, a primeira vez que bebia, a primeira droga que experimentou, a primeira transa com a primeira namorada que nunca se importou comigo.

Essa era a minha vida passando diante dos meus olhos. Será que isso queria dizer que eu morri e que consegui alcançar a eternidade? Logo eu?

O sistema solar já não era mais visto. Eu já estava envolvido por nuvens de gases e poeira de rochas. Passei por diversas estrelas, de diferentes cores, brilhos e tamanhos e por diversos planetas vazios e frios. Mas a única coisa que consegui sentir foi paz. Não sabia como havia parado ali e nem por que, mas só aceitei e me deixei ser abraçado pelo esquecimento.

Entretanto, algo diferente, uma sensação, uma pressão que eu já conhecia. Uma luz vinha se aproximando de mim e quanto mais perto, mais uma pressão oscilante forçava meu peito. Eu conhecia isso. Era a luz que me arrastou pra cá. Ela parou na minha frente, como se estivesse me encarando, e dentro dela, era possível observar um contorno humano, bem mais alto que eu, mas com a face ofuscada pela luz, impossível de definir feições. Ele estendeu a mão e com um toque quase imperceptível me empurrou.

Por mais que o empurrão parecesse ter sido fraco, ele me fez voar para longe com extrema velocidade, transformando a imagem de tudo o que eu via em borrões e riscos. Tentei me sacudir para tentar parar, mas a falta de gravidade não me dava outra opção a não ser aceitar ser levado.

Viajei o espaço entre nebulosas como a luz até sentir uma força me freando aos poucos. Senti que meus órgãos iriam sair de meu corpo, minha cabeça parecia um liquidificador, a sensação de náusea me veio mais forte que nunca.

Entrei no que parecia uma grande nuvem cósmica. De todos os lados clarões, turbilhões e pedras gigantes se chocando e se destruindo. Eu me aproximava de uma grande massa de sujeira, que parecia ser o centro dessa anomalia. Não só eu, mas tudo a minha volta ia em direção a isso, que, a principio, acreditei ser algo parecido com um buraco negro, mas logo vi que estava enganado.

De todas as sensações e sentimentos que já tive em minha vida, nada se iguala a o que eu sentia enquanto me aproximava daquela coisa. De longe parecia ter o tamanho de um planeta, mas agora, vejo que qualquer medida que me viesse a cabeça seria impossível de ser usada.

Não tenho noção da distância que eu estava daquilo, e não tinha noção se ele poderia me notar. Só pude esperar que não.

Fiquei ali, parado observando o que acreditei ser o centro do caos, que acabava convergindo naquela dantesca criatura cósmica. Ela era uma massa gigantesca de uma composição indefinida, que mais parecia com uma confusão de explosões de diversas galáxias dentro de um amontoado de tecido gelatinoso. Tinha milhares de olhos do tamanho das maiores das estrelas e para cada um desses olhos haviam outras centenas de bocas que mais pareciam buracos negros tragando tudo o que estivesse ao alcance. De diversos lugares dessa massa saíam feixes de luz que cruzavam o espaço como grandes tentáculos agarrando os mais distantes dos sistemas solares. Qualquer coisa no raio de milhares de anos luz estava sendo destruído por aquilo, provavelmente sem ter conhecimento de onde vinha.

Morte. Caos. O fim de tudo. Imaginei milhares de nomes possíveis e impossíveis para descrever aquela coisa, mas de algum jeito que eu não sei explicar eu sabia seu verdadeiro nome.

_"Azathoth"_ sussurrei.

 Tal nome soava como uma blasfêmia proferida por meus lábios. Nenhum homem são deveria passar pelo horror de olhar para aquela criatura amorfa, pois contemplar aquela imagem trás apenas o frio que se deve sentir no último sopro de vida.

Do meio daquela indescritível confusão cósmica mais uma coisa conseguiu prender minha atenção. Um som, tão sublime e hipnotizante quanto o horror que presenciar aquela destruição. Parecia o sibilar agudo de uma flauta de notas tortas e aterrorizantes. A criatura quem estava tocando, e pouco a pouco me trazia mais para perto. Por um segundo consegui me desprender do controle que estava submetido e olhei para o outro lado. De alguma forma consegui enxergar a uma eternidade de distância o planeta Terra e percebi que ela estaria na rota dessa coisa.

Meu corpo estava travado como uma estátua, sendo puxado para o que seria a minha morte. Um dos milhares de gigantescos olhos lentamente mirou em mim, me dando a certeza de que eu havia sido notado e finalmente conduzido pelo som de uma tenebrosa melodia para a morte e consumido pelo destruidor cósmico.

Não tive forças para gritas, meus músculos não existiam mais, e a sensação de dormência passou a ser apenas um inconveniente. Fechei os olhos e aceitei.

Nada.

Apenas nada.

Isso o que eu imaginei ser a morte, como ser largado na imensidão do espaço e vagando sem rumo por infindáveis galáxias.

Quando estava prestes a ser comido como um simples aperitivo, senti uma sensação conhecida, oscilante e quente. O ser de luz apareceu novamente e parou na minha frente, como se estivesse me observando. Ele estendeu a mão e tocou em minha testa forte o suficiente para me afastar daquela criatura e me arremessar novamente na velocidade da luz espaço a dentro. Vi novamente tudo o que eu tinha visto antes, nebulosas, galáxias, estrelas, planetas, tudo passando como borrões espectrais a minha volta. Num piscar de olhos estava entrando na Terra e com um grito vi o telhado de minha casa se aproximando, só consegui botar as mãos na frente do rosto me preparando para o impacto.

Acordei trêmulo no chão, com meu quarto exatamente do mesmo jeito que eu havia deixado quando fui dormir. Estava encharcado de suor e com dificuldade de respirar. Levantei devagar completamente tonto e com uma dor de cabeça absurda. Apesar de tudo, fiquei aliviado ao perceber que tudo não passou de um sonho, um sonho muito real, mas ainda um sonho. Devo ter passado mal durante a noite, só isso. Me apoiei na parede e dei uma risada nervosa ao relembrar de toda aquela loucura que passei.

Fui cambaleando em direção a porta do quarto para beber uma água, mas no caminho algo fez meu sorriso sumir e me sentir medo de novo. Um vento forte tomou meu quarto, algo o iluminou como dia e a pressão e o som oscilante, tudo estava lá. Sem fôlego me virei devagar, e quando meus olhos se adaptaram a luz, consegui ver de dentro dela aquele homem que não conseguia definir antes, tinha a pele branca, vestido com uma roupa azul e dourado. Seus olhos eram pequenos, dos azuis mais claros e aconchegantes que já vi e seus cabelos loiros se moviam como se estivesses levitando no ar. A luz vinha da palma de sua mão direita, que estava levantada na altura de seu peito.

Percebi que ele não era a ameaça, talvez tudo aquilo tenha sido como um aviso ou um alerta, que eu deveria aprender a interpretar. Me ajoelhei perante aquele momento, quase sem fôlego para me manter acordado, e com todas as forças que eu tive perguntei quem ele era. Ele se moveu em direção à janela, como se seus pés não tocassem o chão e com uma voz calma e sussurrante me respondeu em poucas palavras, apenas para desaparecer nos céus noturnos, onde se confundiria com tantas outras estrelas.

Como eu disse, não faço ideia se o que passei foi um sonho ou foi realidade, mas com certeza lembrarei dos momentos que tive fora de meu corpo terrestre. Levei muito tempo para me recuperar, meus músculos ficaram dias sem responder direito e a sensação de náusea até hoje se mantem. Quando olho para o céu, tenho medo de ser visitado novamente pela imagem apocalíptica do caos, mas principalmente, nunca vou esquecer daquelas palavras que pareciam ser ditas para o interior da minha alma, o nome daquele ser de luz que me visitou e me trouxe a trágica mensagem, aquele que se chamou de Ashtar.