quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A lenda do Blues



Essa cidade, como todas as outras, possui muitas histórias e lendas, algumas verdadeiras e outras tão intrigantes que ficam perdidas na fina linha que divide a compreensão e o que é absurdo.
 Você veio aqui me perguntar sobre algumas delas, e sim, tenho várias para contar, histórias que até mesmo aconteceram comigo, mas não se preocupe, não vão ser de causos de um velho padre do Mississippi que vou encher seus ouvidos, vou te contar sobre uma lenda muito estranha que começou por essas bandas, ainda quando eu era criança.
 Ela é sobre um música, um dos melhores que o Blues já conheceu, você já deve ter ouvido falar dele. Sua música encantou a todos os que ouviram as rádios desse país. Mas o que poucos sabem, é que sua música começou naquela encruzilhada, nos limites da cidade.
 Dizem que no começa ele era um fracasso, que tocava de bar em bar sem receber um tostão por isso, pois tocava muito mal. 
 Ele tentou por muito tempo, mas o fracasso foi a única coisa que ele conheceu. Quando já falido, passou a ser um andarilho, passando a tocar, agora não por dinheiro, mas por comida. Seus únicos pertences eram suas roupas e seu violão antigo dado por um velho amigo. Se entregou a bebida, e sua aparência deplorável só era um reflexo da sua desprezível carreira. Pobre coitado.
 Suas andanças o fizeram passar por lá, a encruzilhada que falei, numa noite enevoada e soturna. Dizem que aquela noite o céu era mais negro que carvão, não se podia sequer ver o brilho da lua. O vento gelava seu corpo, e quando chegou no meio do cruzamento, percebeu que não conseguia saber aonde estava indo. Não enxergava qual rua era qual e desolado, acabou se sentando no chão e lá sacou seu velho violão e começou a dedilhar uma série de notas desajustadas, e junto delas cantou um velho cântico de versos profanos a muito esquecidos da época dos catadores de algodão.
 Naquele momento só era possível ouvir aquela melodia, que passou a se intercalar com o badalar dos sinos dessa velha igreja que estamos. A cada batida que viria a marcar meia-noite, o jovem cantava mais alto. A sua volta, o vento fresco dos canais começou a ficar quente, e as poucas luzes visíveis começaram a piscar enlouquecidas. Quando o sino enfim soou sua décima segunda badalada, o jovem parou de tocar. 
 Silêncio outra vez.
 Ainda no centro do cruzamento, esticou o pescoço e com os olhos cerrados buscou algo a sua volta. Esperou lá por um tempo, apreensivo, até ouvir o som distante de algo batendo no chão. Se levantou em um pulo e abraçado em seu violão e com os músculos rígidos girou em seu próprio eixo para tentar identificar de onde vinha o som. Era como o baque de um bastão de madeira no chão, que lentamente se aproximava cada vez mais. Parecia que vinha de todas as ruas possíveis, senão de dentro de sua própria cabeça. Junto com esse barulho também podia ser ouvido um assobio, calmo e melodioso, tão próximo quanto. Sem enxergar, o jovem músico só pôde ficar rodando como um louco, empapado de um suor tão frio quando gelo.
 O som sumiu, o que só fez aumentar sua apreensão. 
 Tão assustador quanto um barulho misterioso vindo do nada era o seu misterioso sumiço.
 Depois de um tempo em silêncio, se sentiu mais calmo e escolheu uma das ruas para voltar a andar, quando se assustou com a aparição de um senhor bem atrás dele. O susto o fez perder o equilíbrio e acabou caindo sentado no chão. Isso só fez o velho rir com a cena, uma risada sexa que mais parecia uma tosse doente.
 Observando melhor, viu  que o velho mais parecia ser um mendigo, com as costas arqueadas e roupas surradas, barba curta porém emaranhada e suja, assim como seu crespo cabelo branco. Ele andava com dificuldade se apoiando em uma bengala de madeira improvisada de algum galho de árvore. Sem dizer nada o velho levantou sua mão ossuda e apontou para o violão do rapaz, que o entregou relutante. O mendigo se equilibrou torto em uma das pernas e como se fosse um hábil músico, começou a afinar o instrumento um tom abaixo do natural.
 Fez um teste, e executou com maestria uma sequência de notas até então desconhecidas pelo rapaz, que estava observando tudo estático. 
 Devolveu o violão como se fosse uma das maiores relíquias feitas pelo homem. 
 "Toque". Disse o velho com a voz rouca quase falhada. E o rapaz que antes estava falido por nunca tocar uma boa música, de repente começou a tocar o melhor blues que esta cidade, talvez o mundo, já ouvira. Tocou notas impossíveis, que seus dedos jamais alcançaram, até ele mesmo se encantara com aquilo. Quando foi perguntar para o velho o que ele havia feito, foi surpreendido com o toque da bengala em seu peito, na direção de seu coração.
 "Um dia eu pego o que me deve". Disse o mendigo se virando e indo embora. 
 Junto com ele foi-se a névoa, a última coisa que se viu foi o contorno do mendigo largando sua bengala e ficando de coluna reta, colocando elegantemente um chapéu na cabeça, ou pelo menos é isso que se acredita.
 A partir daquele dia, o jovem conhecido como Robert virou um dos maiores cantores de blues já ouvidos, com suas músicas tocando em todas as rádios dos Estados Unidos. Seus ritmos fizeram nossa cidade ser conhecida de novo, e mostrou para todos que nós negros também podíamos fazer boa música.
 Sua morte? Ninguém sabe ao certo o que aconteceu com Robert Johnson. Uns dizem que ele se envolveu com uma moça casada e seu marido acabou o matando. Outros que tinham pessoas que não gostavam de sua arrogância e deram veneno pra ele tomar junto de sua aguardente. Já os brancos da cidade grande dizem que o velho mendigo finalmente tinha voltado pra receber o pagamento pelo pacto feito anos atrás e que sumiu com Robert em meio a outra madrugada de névoa. Tudo o que se sabe é que a última vez que foi visto ele tinha 27 anos e estava tocando naquela casa quando ela não estava caindo aos pedaços. Eu estava lá assistindo e pela primeira vez vi ele parando uma música pela metade, se levantar e sair correndo sem olhar pra trás. Bom, pelo menos é isso o que me lembro.

Esse pacto? Que pacto foi esse padre, e quem era esse mendigo?

 O pacto? A fama pela sua alma. E o mendigo? Hum. O mendigo, meu jovem, era o Diabo. O Diabo.