domingo, 11 de setembro de 2016

Centelha

                
É tudo tão igual. Toda essa história de acordar sempre no mesmo horário, pra sempre fazer as mesmas coisas, sempre pegar o mesmo caminho pra tudo, sempre os mesmos rostos, as mesmas vozes. Não sei. Só é tudo muito igual.
Eu não escolhi isso, lá no fundo acho que ninguém escolhe ser repetitivo, ou ninguém deveria. Pode ser a melhor coisa do mundo, mas chega a um ponto que você já o fez tantas vezes que simplesmente perde a graça e pouco a pouco vai se tornando vazio. Como uma dose diária de alguma droga injetada diretamente na veia, no início você sente o líquido pernicioso percorrer o seu corpo inteiro enquanto você se deleita com a sensação alucinante. Então você injeta uma segunda vez, e uma terceira, quarta, quinta, e sua mente cada dia mais fraca passa a se perguntar se haverá força para mais doses, ja não suportando mais. O problema é que quando chega a isso, o seu corpo já está tão dependente que torna-se pouco provável sair dessa letargia.
Passei a devagar sobre isso indo para o trabalho, quando pela enésima vez o motorista do ônibus que eu sempre pegava reclamou do trânsito caótico da Alameda 102. Ele sempre saía pontualmente às 7:30h e passava no meu ponto as 7:45h, já nos reconhecíamos, várias vezes me sentei por perto para irmos conversando, mas comecei a me distanciar quando percebi o estranho hábito de fazer comentários repetitivos. No início ficávamos debatendo sobre esses comentários, mas acho que ele percebeu que de tanto ouvir as mesmas coisas eu comecei a ser mais seco. Ele sempre me recebia com um apático mas estranhamente carismático bom dia, seguido de um comentário seco sobre o clima, ou iria fazer frio demais ou iria esquentar, pouco depois começava a resmungar sobre suas depressivas e estressantes condições de trabalho e que nao ganhava o suficiente para isso. Ah, e por fim o trânsito merda da Alameda, que estava sempre engarrafado, e até nisso ele era pontual, sempre fazia o mesmo comentário no mesmo lugar. Eu achava graça, mas de repente eu passei a me incomodar a cada vez que eu ouvia essas coisas. O bom dia passou a ser monotônico e irritante, sua situação de trabalho passou a ser irrelevante e o trânsito apenas a continuação do caos que eu percebi ser minha vida.
_"Será que eu sou repetitivo?" _ passei a me perguntar._ "será que eu finalmente consegui cair na pesarosa monotonia que eu tanto reclamo?"
E o ar que eu respirava pouco a pouco começou a queimar meus pulmões, a luz que me tocava ao amanhecer ardia meus olhos, o hábito de ter que levantar sempre aquela hora e pegar sempre o mesmo ônibus, pra ir ao mesmo lugar e ver as mesmas pessoas, passou a ser a droga que mais fazia mal ao meu corpo. Meus passos ficavam a cada dia mais lentos, e minha voz cada vez mais lamuriosa. Escrever essas notas agora é uma das poucas coisas que me livrava desse ciclo infernal. Me disseram uma vez que precisamos disso, de uma rotina, mas não consigo ver esse hábito sendo tão diferente do mais abrasivo banho de sal das águas do mar.
Entretanto, algo peculiar me faz acreditar que pelo menos um pouco de minhas preces são ouvidas. Uma pequena fagulha, um brilho, tão visível quanto um vagalume perdido no éter do espaço, brota na escuridão da minha ininarrável sequência de repetições. Esse brilho possui a beleza do cristal mais puro, e o cheiro luxurioso do pecado. Por vezes sigo sua luz e ela me leva a um mundo de indescritíveis formas e cores, onde talvez nenhum outro tenha conseguido chegar. Esse lugar só era acessível pelo mundo dos sonhos, o único lugar onde a mesmisse era impossível, onde cada vez que sonhamos passamos a ser algo diferente. A primeira vez que essa luz apareceu para mim eu estava preso em mais um desses ciclos chatos, quando em meio aos grunhidos lotados e olhares frios de pessoas rendidas ao tédio e melancolia, ouvi um som que me fez desviar a atenção, algo parecido com uma risada, difícil de encontrar, mas belo de ser ouvido. Poucos ali emitiam esse som, e por um momento me atrevi a desviar de meu caminho, curioso, tentando encontrar a fonte de tal beleza. Aos tropeços e pedidos embaraçosos de desculpa, segui a fonte dessa melodia até que  encontrei entrando em um ônibus para a Barra da Tijuca  uma criatura linda de cabelos negros e ondulados. Um frágil sorriso me fez esquecer que estava atrasado e um doce olhar fez meu corpo paralisar-se em um estranho torpor estático. Algo ali era diferente, algo me chamava para fugir desse padrão de vida que eu estava seguindo.
Os dias passaram e sempre que eu passava naquele lugar eu observava para ver se encontrava aquela linda criatura sem nunca mais ter essa sorte. Entretanto, vez ou outra eu ouvia bem de longe um fraco ruído que eu sabia ser da risada dela, não conseguia tira-la da cabeça, e de alguma forma, isso estava me fazendo viver minha vida de maneira mais intensa, poque queria chegar o quanto antes em casa e mergulhar de cabeça no universo multidimensional dos pensamentos, lugar este que eu conseguia ver detalhadamente cada traço do rosto daquela pessoa que há de me tirar em definitivo desde inferno repetitivo da vida. Ainda que a lua alcance o negro céu e que as gotas da chuva banhem cada parte de meu corpo prosaico, eu saberei até o fim desse ciclo que aquela quente e deliciosa fagulha foi enviada a mim para ser meu livramento, e acredito que um dia estarei perto o suficiente para que ela queime minha carne com o seu calor.