quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Conto: Presença


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  Lembro como se fosse hoje. Eu estava sentado no sofá da sala tentando ler o jornal enquanto a televisão estava ligada em algum filme que eu parei de prestar atenção a tempos. Já era noite e todas as janelas estavam fechadas para que o vento gelado não entrasse. Meu filho brincava alegremente com suas peças de encaixar  bem do lado de onde eu estava e ficava fazendo a sequencia desconexa de sons e grunhidos que crianças da idade dele vivem fazendo. Por mais de uma vez tive que parar minha leitura pra fazer ele parar de jogar as pecinhas pra cima da televisão, eu enxugava a baba dele e ele voltava a brincar entretido.
  Essa ação se repetia por horas até que o cansaço começou a tomar conta de meu corpo e acabei pegando no sono enquanto tentava ler as páginas de esporte. Fiquei lá desacordado por algum tempo não tendo noção de o que meu filho fazia, embora ainda o escutasse falar aquelas palavras que só ele entendia. Foi assim até sem mais nem menos todos os barulhos pararam e se tornaram completo silêncio. Isso seria uma bênção se não fosse tão incomum para uma criança daquele tamanho.   Despertei e em um movimento desengonçado acabei deixando o jornal cair, olhei para o lado com a esperança de que meu filho tivesse dormido, mas me deparei com a imagem dele ainda acordado, sentado e completamente imóvel olhando fixo para algum lugar no final do corredor que ligava a sala para a cozinha. Chamei ele uma, duas, três vezes, sem sucesso, me levantei e para olhar melhor para seu rosto e percebi que seus olhos não tinham o brilho normal de sempre, toquei em seu pequeno ombro para chamar sua atenção, mas continuei sendo ignorado. Me abaixei para ficar um pouco mais próximo de sua altura e segui seu campo de visão para tentar decifrar o que ele estava olhando tão compenetrado, mas não consegui ver nada. _O que você está olhando campeão?_ perguntei pra ele brincando, mas a resposta que eu tive só serviu para gelar minha espinha de uma maneira que eu jamais esperaria que gelasse, ainda mais vindo do meu filho de 2 anos. Ele se virou lentamente para mim, sem tirar por um minuto os olhos do corredor, e depois de alguns segundos foram seus olhos a se virarem para mim e pela primeira vez senti que meu filho sentia medo, ele não emitia nenhum som alem da respiração, mas seu semblante demonstrava um choro que se recusava a sair, era como se ele estivesse tentando me avisar que ali tinha alguma coisa, e por mais que eu não conseguisse enxergar, ele conseguia.
  Já não aguentava ver aquilo, me levantei e fui seguindo a passos fortes pelo corredor para amostrar para meu pequeno (e me fazer acreditar) que não tinha nada ali. Fui andando até lá, mas quando cheguei mais ou menos na metade do caminho ouvi um grito muito forte, era meu filho, me virei o vi chorando e se debatendo, talvez um aviso de que não era para eu ir para lá, ou talvez medo de ficar sozinho, não sei ao certo. Respirei fundo e resolvi voltar para junto dele, quando senti de uma hora para outra o ar ficando gelado. Senti algo como se fosse uma presença passando por de trás de mim, um barulho seco no interior da cozinha apagada, fiquei dividido entre pegar meu filho para tentar parar com seu choro ou checar para ver se tinha alguém na cozinha, o que era relativamente difícil, já que a unica porta da casa estava trancada a janela fechada.
  Resolvi fazer meu filho esperar um pouco, peguei a primeira coisa que pude para servir como arma, no caso uma vassoura que estava largada no próprio corredor, segurei ela com força e fui até a cozinha agoniado com os gritos da criança que martelavam meus ouvidos com força. Cheguei lá, acendi a luz, estava tudo em ordem. Respirei aliviado, uma calma momentânea, por que mais uma vez o choro parou de maneira repentina. Minha cabeça deu voltas e fiquei tonto pensando nas piores coisas que poderiam ter acontecido com minha criança. Sai correndo de volta para a sala a tempo de ver ele simplesmente sentado em frente a televisão a olhando fixamente, com o mesmo olhar sem brilho da ultima vez. Aparentemente o filme já havia acabado, mas o estranho é que a imagem estava estática em uma mensagem em um fundo azul:"Voltamos já".
  Minha respiração não funcionava direito, minhas pernas começavam a ficar fracas e meus passos acabavam que saíam descoordenados. Fui até meu filho e o peguei no colo_Vamos pra cama campeão_disse a ele, que ainda olhava para a imagem estática na televisão. O balancei um pouco ensaiando uma musica de ninar, pra ver se conseguia fazer ele ficar mais normal. Dei alguns passos na direção da escada e quando já estava quase chegando ouvi o barulho da televisão desligando sozinha, estranhei, mas pensei que eu poderia ter ativado sem querer a função "sleep", pelo menos assim preferi acreditar. Quando botei o pé no primeiro degrau foi a vez da luz da sala piscar, e admito, isso conseguiu me assustar, muito. Fiquei travado no meio do caminho, respirando ofegante tentando buscar fôlego. O que parecia ser uma breve queda de luz, se tornou um pisca pisca continuo, e foi acelerando até ficar completamente descontrolado, e a luz foi só o primeiro evento, pois entre uma piscada e e outra consegui enxergar uma sombra com contornos de um homem bem no meio da sala, ele virou a cabeça lentamente até olhar na minha direção.
  Medo, a palavra que mais define o que eu sentira naquele momento. Não só medo por mim, mas principalmente pelo meu filho. Eu tinha medo porque eu não sabia o que diabos estava acontecendo, e não sabia a que ponto poderia ser uma ameaça para a vida dele. Eu tentava mexer minhas pernas e subir a escada, mas minhas pernas pareciam que pesavam 100 Kg cada uma, como uma força negativa que me segurava impedindo que eu conseguisse correr. A sombra vinha andando na minha direção e afastava os móveis que estavam em seu caminho sem nem ao menos tocá-los. Eu não sei se meu filho tinha noção do que estava acontecendo, já que ele não emitia nenhum som, ele apenas encarava a presença com cara de medo, mas sem nenhum choro. Olhei pra ele e entendi que ele sua segurança só dependia de mim. Usei toda a força que eu tinha a ponto de gritar de dor, mas consegui me mexer e a cada passo era como se eu me livrasse mais e mais da força que me segurava. Acelerei e consegui chegar no quarto da criança, tropecei em alguns brinquedos e chutei a porta pra fechar ela. Do lado de fora ouvi o estrondo de coisas sendo jogadas de um lado para o outro, provavelmente minha sala sendo destruída.
  Tranquei a porta e me escorei nela, sem nunca deixar de abraçar meu filho e me sentei no chão. Eu estava exausto, completamente ensopado de suor, parte pelo pânico que eu sentira e parte pelo esforço físico pelo qual acabara de ser submetido. Limpei um pouco de sujeira que estava em suas bochechas rosadas, dei um beijo em sua testa, e falei para ele que eu jamais deixaria que nada acontecesse, olhei para a parece pouco acima do seu berço e vi a cruz que minha mãe tinha feito eu pendurar por ali, suspirei mais uma vez enquanto ainda escutava o barulho da destruição do lado de fora do quarto, dei um forte abraço em meu filho, e finalmente senti o resto de minhas forças se esvair, o cansaço me dominou e desmaiei ali mesmo.

  No dia seguinte acordei com um raio de sol entrando pela janela e acertando bem no meu olho, minhas costas doíam pela posição indigesta na qual dormi, olhei envolta e vi que o quarto estava normal, dei um pulo de dor quando meu filho deu um puxão no cabelinho da minha barba, mas fiquei feliz ao ver que ele deu risadas da peça que acabara de pregar. O peguei no colo e abri a porta, fui pra fora e desci a escada. Para meu espanto a sala estava normal, até mesmo os brinquedos estavam no mesmo lugar que haviam ficado antes de eu dormir no sofá, definitivamente tudo normal.

  Naquele mesmo dia recebi visitas da minha família, foram lá para almoçar, fiquei observando para ver se algo estranho acontecia, mas meu filho estava mais brincalhão do que nunca, como se nenhum evento da noite anterior tivesse acontecido. Até hoje eu me pergunto se aquilo realmente ocorreu ou se foi apenas minha mente vagando sonolenta me enganando. Eu já havia ouvido dizer que a inocência das crianças os permitia ver coisas que nós adultos não poderíamos ver, e eu nunca mais duvidei disso. De fato, nenhuma noite de sono naquela casa foi a mesma desde esse dia.