quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Conto: Paz.

Fabio chegou em casa, trazendo consigo uma sacola de compras. Não tinha dinheiro, então comprara apenas o necessário para este dia.

Entrou pela porta de trás, que dava acesso a cozinha, ela estava desarrumada, e os azulejos estavam antigos e muitos deles rachados com manchas horríveis de gordura.
 
Deixou as compras em cima da pia, que estava com pratos sujos acumulados de vários dias de refeição, repletos de baratas rondando e se alimentando dos restos de comida estragada.

Foi até o banheiro tomar um banho. Tirou a roupa e se dirigiu até o chuveiro, abriu a torneira e sentiu o jato de água gelada no corpo. A água estava suja, e dava até para tentar discutir se o que saía ali era mais lama ou água de fato. Mas Fabio não ligou para isso, era durante o banho que ele pensava na vida, nos muitos erros e nos poucos acertos dela, pensamentos estes que eram cada vez mais constantes nos últimos dias. Ficou parado sentindo as gotas caindo constantes em seu rosto, tentava olhar para o alto de olhos abertos mas era impedido pela água. Respirou fundo, mais uma vez veio a sua cabeça o sentimento que mais odiava. A lembrança. 

Lembrava de dias em que ainda conseguia se divertir, conseguia compartilhar suas aventuras com alguem e como pouco a pouco tudo isso foi se perdendo. Lembrava que por sua ingenuidade  fora enganado diversas vezes, traido de maneira fria, por amigos, que ele acreditava ferozmente que tinha. Lembrou-se das pessoas que amou. Daquela doce menina de pele macia como pêssego que se apaixonou perdidamente no primário, até a companheira de faculdade, com quem teve luxuriosas aventuras durante meses até ser trocado por alguem com muito mais dinheiro.

A muito tempo não sorria, ele sequer lembrava de o que era isso. Sempre negado pela família quando necessitava, descobriu tarde que não podia confiar em mais ninguém. Infelizmente sua vida sozinho não foi o que pode se chamar de sucesso. Todos os seus investimentos foram frustrados, foi demitido por diversas vezes, mais que se esforçasse nunca era o suficiente.

Finalmente saiu do banho, pegou uma toalha suja e úmida e se secou como podia, se enrolou nela e foi para a sala. 

Ligou a televisão para ver as notícias da noite, deu umas pancadas nela para melhorar a imagem que estava com muita interferência.  Sentou-se no sofá e observou o amontoado de pó branco e agulhas que estavam sobre a mesa, ao lado do bolo de contas não pagas. 

Ficou encarando a imagem das drogas, e trêmulo, dividiu uma carreira do pó, enfiou a carcaça de uma caneta no nariz e inspirou fundo. A sensação por um instante era  de alívio, esqueceu todos os problemas, se permitiu relaxar. 

Ainda com o nariz sujo, e fungando inclinou a cabeça e viu seu reflexo no vidro da mesa. Via a sua imagem e percebeu que não se reconhecia mais, encarou por um tempo com um olhar vazio, quando  foi tomado por um repentino ataque de fúria passou a mão com raiva e empurrou tudo o que estava sobre a mesa, o que só deixou o caminho livre para se encarar mais uma vez. Respirava de maneira pesada e tensa, e com um grito deu um murro com toda a força no vidro, o quebrando em milhares de pedaços e abrindo um profundo corte em seu punho.

Retirou a camisa e enrolou a mão com ela, rapidamente o vermelho do sangue tomou a cor do tecido.
Levantou-se cambaleando, ainda sobre o efeito alucinante das drogas. As pernas se embolaram e para se manter de pé se escorou na parede. 

Observou mais uma vez a mão que ainda sangrava.

Percebia que não sentia dor, na verdade, não sentia nada. 

A sensação vazia o tomou de um jeito que o silêncio do lugar solitário fosse quebrado apenas pelo som impreciso da televisão e por um soluço de choro. 

Em poucos segundos o que era mais uma lamúria se tornou lágrimas descontroladas, Fabio tentava mas não conseguia parar. Gritava e socava a parede manchando ela de sangue. Se encostou nela ainda em lágrimas e escorregou até que estivesse sentado no chão.

Depois de algumas horas, finalmente conseguiu se recompor. Olhou para o relógio de parede e viu a hora que marcava.

22:00 horas.

Secou as lágrimas, e ainda com os olhos vermelhos se levantou com dificuldade. 

"Está na hora", ele pensava.

Foi até seu guarda roupas e pegou sua melhor roupa, um conjunto social todo preto, que só havia usado uma vez, queria estar bem arrumado para quando viessem o buscar.
Se arrumou.

Foi até sua geladeira e pegou uma garrafa de vinho, o mais caro que seu pouco dinheiro poderia comprar e uma taça que já não usara a muito tempo. Botou a mão na bolsa de compras e tirou dela várias embalagens de remédios, dentre eles analgésicos pesados e antibióticos que na verdade não precisava.

Foi até o quarto.

Nele, girava na velocidade mínima um ventilador de teto aos pedaços. 

Botou o vinho e os remédios na mesa de cabeceira, pegou de uma gaveta um pedaço de papel e uma caneta, escreveu alguma coisa e deixou de lado.

Respirou fundo e olhou envolta de si mais uma vez, meio que para se lembrar de sua situação.
Estava preparado.

Retirou cada um dos comprimidos e os engoliu um a um, sempre seguido de uma taça de vinho.
Quando terminou todos os comprimidos se deitou na cama e ficou olhando para o teto de pintura inacabada por bastante tempo.

Lembrou de tudo mais uma vez. Sentiu seu peito arder, sua respiração ficava cada vez mais pesada.
Piscava mais e mais devagar, os olhos ficavam pesados.

Depois de uma hora deitado Fabio conseguiu olhar lentamente para o lado, só para avistar alguem entrando em seu quarto. Era uma mulher, linda de pele pálida e vestido preto, ela carregava em sua mão uma vela e as chamas dela trepidavam fracas. Ela se aproximou lentamente da cama até estar do lado dela, olhando fixamente para o homem ali deitado.

Eles se encaravam por um tempo e  em um suspiro sereno Fabio se permitiu sorrir, o primeiro sorriso em tempos.

A vela se apagou.

Fabio mandou um olhar vazio para o teto e a mulher encostou suavemente seus lábios aos dele.
Ele adormeceu sorrindo, e assim permaneceria agora eternamente.

Em sua mesa de cabeceira se encontrava o papel que ele havia escrito: " Agora estou feliz "

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Conto : A Coisa parte 1

Marcelo estava correndo a toda, tropeçando em suas próprias pernas, enquanto tentava não se perder em nenhuma daquelas vielas da comunidade.
Ele havia sentido, que de alguma maneira algo de muito ruim iria acontecer por lá, mas sua preocupação maior era o fato de terem pessoas importantes vivendo ali.
Ouviu uma rajada de tiros, ainda distantes.
Parou para tentar entender de onde vinham, respirou fundo e voltou a correr. Suas pernas finas eram ágeis ante ao perigo iminente e aliado a isso, tinha o pulmão de um atleta.
Porém nem o maior dos atletas estaria preparado para subir aquelas ruas irregulares ainda de terra, repleta de buracos e cacos de vidro.
Mais tiros, dessa vez mais perto.
Marcelo se abaixou atrás de um carro, para se esconder de eventuais balas perdidas. Enquanto respirava, observou pessoas fechando as portas e janelas de suas casas simples, todas elas com um mesmo olhar de medo. Já haviam passado por isso várias vezes e sabiam que o pior ainda estava por vir. Familiares de muitos deles já haviam perecido naquele cenário de guerra, e o mínimo que poderiam fazer era rezar para que não perdessem mais ninguém.
A noite, apesar de tudo, estava com um clima agradável, mas com muitas nuvens escuras anunciando que em breve iria chover. Mas nem isso era o suficiente para impedir que o suor escorresse aos litros.
Se esforçou mais um pouco, agora quase na parte mais aberta da comunidade, quando enfim surge aos tombos uma figura magra de camiseta larga e chinelos. Marcelo não esperava, e tentou parar a corrida, o que quase o fez perder o equilíbrio.
Ele estava armado com uma AK-47, mas a segurava com visível desleixo. Não pareceu se importar com a presença de Marcelo, pelo contrário, olhou para ele com uma face que demonstrava mais do que o puro pânico e finalmente falou aos gritos ainda tentando se levantar para voltar a correr:

_Foge merda!

Tentou se virar, e aos tombos disparou uma rajada para onde o campo de visão do Marcelo não alcançava. O som dos tiros o deixou com um zumbido no ouvido.
O rapaz ainda ainda atirava, gritando como um louco quando uma barra de ferro de pelo menos 1 metro veio voando em sua direção com uma velocidade assombrosa pegando em cheio em seu peito e o encravando em um carro logo atrás.
O jovem largou a arma no chão e tentou alertar a Marcelo novamente, mas suas palavras se perderam em uma golfada de sangue que precedeu sua morte.
Marcelo sentiu seu coração quase pulando fora de seu peito, a frenesi do momento, com aquela mistura de adrenalina e medo o deixaram tonto. Ele não sabia se continuava seu caminho ou se ouvia o rapaz, agora morto, e fugia daquele lugar. 
O tiroteio ficara mais intenso, toda a comunidade estava tomada por completo caos. Seja o que fosse a coisa ou pessoa que arremessou aquela barra de ferro, com certeza haveriam mais por ali. Marcelo sentia seu corpo formigando, mas tomou coragem e continuou correndo cada vez mais para o centro do amontoado de casas, tentando encontrar a casa de sua família.
Finalmente avistou uma área aberta, nada mais que um grande espaço livre de vielas e becos onde as crianças armavam gols com seus chinelos. A casa que procurava estava nos limites desse espaço, mas o que ele viu lá era bem diferente das imagens de sua ingênua infância. Um palco de guerra estava montado. Os bandidos que lá dominavam estavam cercados e atirando como loucos tentando virar a situação. Porém não era uma facção rival ou a polícia, mas algo muito mais assustador, que fez Marcelo repensar a definição de medo, e isso agora vinha em sua direção.